Construir a Europa: Da Crise à Integração
Discurso do Presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso, no Colóquio Integração e Democracia, Lisboa, 11 de Junho de 2010
José Manuel Durão Barroso
Presidente da Comissão Europeia
Exmo. Senhor Ministro dos Negócios Estrangeiros
Exmo. Senhor Dr. Artur Santos Silva, Presidente da Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República.
Exmo. Senhor Dr. Rui Machete.
Senhores Embaixadores.
Quero agradecer antes de mais o convite que me foi dirigido para abrir a conferência de hoje sobre os vinte e cinco anos da adesão de Portugal à Comunidade Europeia.
O tema que me proponho tratar é o modo como as crises têm reforçado a construção europeia.
AS Europa atravessa um período difícil. Deve, simultaneamente, ultrapassar a crise financeira e económica, retomar o caminho de um crescimento económico sustentável, reformar os seus sistemas sociais e desenvolver uma estratégia externa para lidar com um mundo competitivo e exigente. Mais do que nunca, a coragem, a vontade e determinação políticas serão fundamentais.
Apesar do pessimismo e dos receios, inteiramente compreensíveis, de muitos cidadãos europeus, acredito que a Europa responderá com sucesso aos desafios que enfrenta. Vou mesmo mais longe: estou convencido que a União Europeia sairá da crise mais forte e melhor preparada para defender e promover os seus interesses.
O primeiro motivo que explica esta confiança é a experiência histórica. Nas últimas décadas, a Europa passou por crises graves e por transformações profundas, e ultrapassou-as sempre de forma positiva através do reforço do projecto europeu.
Em todos esses períodos, assistiu-se a momentos de grande pessimismo em que muitos questionaram o futuro da integração europeia. A verdade é que a Comunidade e a União passaram os testes com sucesso, reforçando a coesão europeia.
Logo no início da integração europeia, a rejeição da Comunidade de Defesa Europeia, em 1954, abriu uma crise na Europa. Temeu-se que a experiência comunitária acabasse prematuramente. No entanto, três anos depois, assinava-se o Tratado de Roma.
Durante a década de 1960, ocorreram diversos conflitos institucionais, divisões entre os Estados-membros e divergências sobre o alargamento da Comunidade. Porém, no início da década seguinte, foi criado o Conselho Europeu e deu-se o primeiro alargamento, com a integração de três novos países. Estabeleceu-se ainda a política agrícola comum, a política regional e, no plano externo, a Comunidade assinou a Convenção de Lomé, lançando a política de ajuda ao desenvolvimento. E a década viria a terminar com as primeiras eleições directas para o Parlamento Europeu, em 1979.
Sete anos mais tarde, em 1986, a Comunidade Europeia passou a 12 países com a entrada de Portugal e Espanha.
No período entre 1989 e 1991, a Europa testemunhou mudanças históricas: revoluções políticas, a reunificação alemã, e o colapso da União Soviética. Assistiu-se à conjugação de vários factores de instabilidade política e diplomática. Nada garantia que as instituições construídas no pós-Guerra sobrevivessem ao fim da ordem geopolítica que as criou. Os países europeus perceberam, contudo, que o reforço do projecto europeu seria a melhor forma de lidar com as profundas transformações ocorridas. A Comunidade Europeia não só avançou no processo de integração, com a assinatura do Tratado de Maastricht, como entrou numa nova fase que a levaria a adquirir, já no século XXI, uma dimensão continental, com o alargamento aos países da Europa Central.
Com toda a pertinência, cabe perguntar: por que razão as crises têm reforçado a integração europeia?
Essas crises têm vindo a revelar um grau elevado de interdependência entre os Estados-membros. Mesmo mais elevado do que muitos julgavam antes da ocorrência dessas mesmas crises. Na actual crise ficou também clara a elevada interdependência entre as economias e os sistemas financeiros dos países europeus. O confronto com a verdadeira dimensão desta interdependência obrigou-nos a repensar e a encontrar novas soluções do ponto de vista legislativo. Soluções essas, sejamos francos, que não teriam tido condições de aceitabilidade antes da crise.
Há assim um momento durante os períodos mais críticos em que os Estados-membros se apercebem da insuficiência dos progressos alcançados e da necessidade de encontrar novas soluções comuns. Nesses momentos, a integração europeia tende a reforçar-se.
Todavia, é fundamental preservar aquilo que temos em comum e que comprovadamente funcionou bem no passado. Estou a pensar concretamente no método comunitário e em tudo o que se perderia se este fosse posto em causa, ou se o processo de integração recuasse.
Mas não é só num plano interno que as vantagens da integração são mais evidentes. No caso das relações externas, os Estados-membros percebem que necessitam da dimensão europeia para lidar com as grandes questões globais. Por exemplo, um mercado interno de 500 milhões de habitantes reforça a capacidade dos europeus para explorar com maior eficácia as oportunidades abertas pela globalização.
O aumento da interdependência na Europa e da interdependência no plano global são processos paralelos. E ambos promovem a integração europeia. A resolução da crise europeia passa pelas instituições europeias, mas também requer uma acção no plano global. Por exemplo, no âmbito do G20. Esbate-se assim a antiga distinção entre 'política interna' e 'política externa'. Cada vez mais as chamadas dimensões externas das políticas europeias dominam as relações internacionais da União e tornam-se um dos principais estímulos para o reforço da cooperação comunitária.
A maior competitividade global contribuirá igualmente para reforçar a construção europeia. Como se afirma frequentemente, no mundo do século XXI, nenhum Estado, por mais poderoso que seja, consegue defender os seus interesses unilateralmente. Se os países europeus quiserem influenciar a ordem global de acordo com os seus interesses precisam de uma União forte.
É também interessante notar que a União Europeia desempenha muitas vezes um papel de mediação entre as democracias nacionais e os processos globais. Muitos queixam-se, e com razão, que a globalização por vezes enfraquece os processos políticos nacionais. O reforço da capacidade europeia para lidar com as questões globais ajuda os Estados Membros a recuperar alguma da sua autoridade sobre certas formas transnacionais de poder mais difusas. Contrariamente ao que sustentam alguns críticos, a construção europeia, neste sentido, serve para preservar a legitimidade democrática e defender os interesses dos cidadãos europeus.
Necessitamos hoje em dia na Europa de lideranças políticas que expliquem aos seus cidadãos a relação entre os interesses nacionais e o projecto europeu. A Europa e o mundo são o espaço que deve enformar o nosso pensamento e a nossa actuação. "Pensem no interesse nacional e reforcem a Europa para agir globalmente". Eis uma fórmula apropriada ao início do século XXI.
No entanto, a execução das estratégias correctas demora algum tempo; e, por vezes, só acontece depois de se compreender certos equívocos. É verdade que a actual crise tem constituído em muitos aspectos um teste ao princípio da solidariedade europeia. Existem tendências de fundo que podem considerar-se preocupantes. O facto de a crise financeira global ter originado uma recessão e o medo gerado pela globalização tendem a reforçar instintos defensivos e sentimentos nacionalistas ou populistas que poderão limitar o espaço para soluções comunitárias.
O contexto económico e social mais difícil que hoje atravessamos não é normalmente aquele que dá melhor conselho em termos de solidariedades transnacionais. Aqui as lideranças europeias devem desempenhar um papel construtivo.
O facto de a crise na Europa ter atingido a zona Euro e ter nalguns casos exposto não apenas divergências económicas profundas entre os Estados-membros mas também culturas financeiras bastante diferenciadas tornou o desafio ainda mais exigente.
Nestes momentos, surge a tentação do cada um por si, o que no plano institucional leva a que muitas vezes se ponha em causa o método comunitário e se tenda a privilegiar o intergovernamentalismo. Este perigo existe actualmente e assiste-se mesmo nalguns casos a uma leitura intergovernamental do Tratado de Lisboa, o que não deixa de ser paradoxal na medida em que estamos perante um texto que consolida juridicamente princípios, valores e processos eminentemente comunitários.
O facto dos desafios europeus com que estamos confrontados terem mobilizado os orçamentos nacionais, quer como garantia do sistema financeiro, quer para assegurar a estabilidade do Euro, leva a que o pólo intergovernamental procure ganhar alguma preponderância. Mas a verdade é que tem sido possível, combinando recursos nacionais e comunitários, encontrar soluções no quadro europeu.
Com efeito, poucos observadores há alguns meses atrás acreditariam que se pudesse mobilizar 500 mil milhões de Euros para mecanismos de consolidação financeira. Isto mais uma vez demonstra que, haja o entendimento da necessidade de acções conjuntas e a indispensável vontade política, o quadro institucional tem a flexibilidade suficiente para se encontrarem soluções adequadas.
Este é o caminho que a Comissão tem percorrido e vai continuar a percorrer. A solução será mais Europa. Por mais Europa não quero dizer mais centralização de competências. Mas mais e melhor acção conjunta. Aqui não nos referimos a questões meramente gerais, mas a projectos concretos.
- Aprofundamento do mercado interno.
- Reforço da governação da zona Euro e da União Europeia através de uma maior coordenação das políticas económicas e do fortalecimento do Pacto de Estabilidade e Crescimento.
- O desenvolvimento dos programas de eficiência e de segurança energética.
- O fortalecimento da política externa comum.
Estou em crer que estamos num daqueles momentos, e já houve vários nas últimas décadas, em que ficar no mesmo ponto não é possível. Perante enormes desafios internos e externos, a opção será entre fragmentação ou avanço da construção europeia. (Os sinais até agora mostram que é possível mais uma vez fazer da crise uma plataforma para uma Europa mais forte); ou [O grande desafio que se coloca aos líderes europeus é transformar a crise numa plataforma para uma Europa mais forte. A Comissão está a fazer tudo para que isso aconteça].
Devemos reconhecer que a crise constitui igualmente um desafio para as instituições europeias. A lealdade dos cidadãos europeus em relação a estas não é natural nem automática, como acontece normalmente em relação às suas nações e aos seus Estados. Por isso, as crises constituem oportunidades para as instituições mostrarem que continuam a produzir as soluções colectivas mais válidas. A legitimidade do método comunitário sairá assim reforçada.
Durante as últimas décadas, tem-se assistido ao reforço da construção europeia para lidar com as crises. É no entanto vital manter a clarividência e perceber qual o caminho que nos interessa tomar.
Portugal, ao longo dos 25 anos do seu percurso europeu, mostrou ter sabido estar ao lado das decisões certas nos grandes momentos de viragem na Europa. Empenhou-se no aprofundamento da integração europeia após o fim da Guerra Fria, apoiou o alargamento ao centro e leste europeu, participou na Zona Euro desde a primeira hora, e esteve na génese do novo Tratado, o Tratado de Lisboa.
À semelhança dos seus parceiros, o país passa por momentos difíceis. Em momentos como este, mais do que nunca, é necessário entender o destino europeu de Portugal. Faço votos para que a lucidez e a sabedoria demonstrada pelos portugueses nos momentos decisivos da história nacional das últimas décadas nos continue a inspirar nos grandes desafios que temos pela frente.
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